sábado, 2 de fevereiro de 2008

Os Maias contados às crianças

Hoje, ao comprar o SOL, foi-me oferecido um pequeno volume com a edição de Os Maias, adaptado para os mais novos por José Luis Peixoto, com ilustrações de André Letria. Trata-se de uma colecção. Os 3 primeiros volumes são oferecidos, os restantes quem quiser compra.
Devo dizer que considero Os Maias uma obra prima da literatura portuguesa, quase o meu livro de cabeceira. Quando não tenho nada de jeito para ler, pego n' Os Maias e releio passagens.
Talvez por isso, fiquei estarrecida com o que me ofereceram hoje: um livro com capa dura, de 25cm x 23 cm, formato tipicamente infantil, com illustrações a condizer e bem bonitas, guarda e contra-guarda em roxo, com 16 folhas (32 páginas) que tive de contar porque não estão numeradas, (estão a ver para que serviu o trabalho de HSL?). Então qual é o problema? - perguntar-me-ão.
Pois bem, o amigo Peixoto agarrou na magnífica prosa do Eça e retirou tudo o que é descrição, enquadramento, narrativa pura, expurgou a adjectivação que dá sentido ao Dâmaso, ao Euzebiozinho, eliminou todo o contexto. De que outra forma poderia enfiar o romance em 16 páginas de texto com uma fonte de tamanho 14 ou mais? E frases a bold em tamanho 16 ou 18, pelo menos?
O resultado é uma prosa inqualificável em que as mulheres aparecem como umas messalinas que abandonam os filhos e os maridos para fugir com outros tipos, ou que parece que são casadas mas afinal são viúvas e têm um amante que afinal deixam para ficarem com outro amante que, vai-se a ver, é o irmão!!!
Em duas penadas, é isto. Também sei sintetizar, mesmo não me chamando José Luis Peixoto.
A culpa não é dele mas de quem lhe encomendou o trabalho de tentar contar a miúdos pequenos uma história que é para adultos.
O problema de verter clássicos da literatura para textos entendíveis por crianças, não reside na forma mas no conteúdo. Há clássicos da literatura que não são definitivamente para as crianças lerem. Deêm-lhes bons clássicos para eles. Atirem-lhes com Moby Dick que o Melville agradece. Obriguem-nos a ler a Ilha do Tesouro, a Alice, compilem a Jane Austen e vão buscar o Salgari ao baú dos esquecidos. Se quiserem ser mais clássicos ainda, reconvertam a Condessa de Ségur para os nossos tempos, As aventuras dos cinco e dos sete. A nossa magnífica colecção Uma Aventura nem sequer precisa de adaptação.
Mas há mais: os romances de cavalaria são próprios para adaptações para a miudagem e outros que eu li - sem adaptações mas reconheço que os tempos eram outros e que hoje é difícil competir com a linguagem abreviada dos chats e das playstations - na minha infância e na minha juventude e que me ajudaram a desenvolver a paixão pela leitura.
O princípio tem de ser esse porque se isso for feito, eles logo hão-de chegar a'Os Maias, quando tiverem idade para ler, perceber e apreciar.
Claro que os exemplos que eu dei não são portugueses. Que se há-de fazer se a nossa literatura não tem grandes exemplos de escrita para crianças? Agora o caminho também não me parece que seja este.
Nas próximas semanas vão sair outros, de Júlio Dinis a Fernando Pessoa, Gil Vicente, Camilo, Garrett, Padre António Vieira e mais Eça. Os adaptadores são, entre outros, a Rosa Lobato Faria, o António Torrado, o Possidónio Cachapa, o Francisco José Viegas, o José Jorge Letria e o nosso professor Rui Zink que adaptou as Viagens na minha Terra. Ora aí está um livro que eu nunca na vida consegui ler, embora tenha começado várias vezes. Esse eu vou comprar, sempre quero ver como é que ele se saiu e pode ser que, finalmente, assim adaptado eu consiga conhecer a história toda.
Agora, Os Maias!....
Juro que se fosse catraia e lesse uma coisa assim, nunca mais na minha vida ia querer ouvir falar em Eça de Queiroz.
Bom esta é a minha opinião, mas posso estar a ver mal as coisas, por isso gostava muito de conhecer as vossas opiniões sobre esta edição d' Os Maias.
Digam coisas.

Madalena Silva

4 comentários:

Anónimo disse...

Nunca li Os Maia (não se diz os Silvas, pois não?) no original, mas o que li hoje de oferta do jornal pareceu-me o resumo de qualquer telenovela. Ainda por cima, o livro cheirava literalmente mal. Não há tintas perfumadas?

Rui Zink disse...

Tem a Madalena toda a razão (e mais alguma) em relaão ao texto do ZLP. E está bem observado: ele de facto espalhou-se tanto pela dificuldade do livro em questão - o incesto e uma sátira de época contados às crianças e ao povo - como pelas opções de abordagem. particularmente infeliz o episódio do Eusebiozinho. A minha solução para tão aviltante (mas paga) tarefa foi outra: reduzir-me quase só ao episódio da Joaninha (1/4 do livro) e fazer corta e cola, mantendo o mais possível a voz do Garrett.

João Silveira disse...

"A culpa não é dele mas de quem lhe encomendou o trabalho de tentar contar a miúdos pequenos uma história que é para adultos."

Não querendo discordar, discordo porque a culpa é em grande parte dele. Se ele se propôs a fazer este trabalho foi porque achava que conseguia. Não conseguiu: foi incompetente, o livro é mau, logo, se foi ele quem o escreveu, a culpa também é dele. Há que suportar as consequências das nossas aventuras: funcionou com os Moonspell, deu asneira com Os Maias.
Aparte disso, concordo, a culpa não é dele; parte também da súbita obrigação fofa de reescrever obras "para as crianças" (e como as crianças são, acima de tudo, imbecis, temos obrigatoriamente de imbecilizar as obras em questão, tanto mais quanto as obras em questão NÃO forem originalmente dirigidas ou compostas "para as crianças".)
Nos casos em que se aceita entrar nesta espécie de projecto, realmente a opção do "corta e cola" é bem mais eficaz e segura. Ao menos que se tente manter alguma da integridade e valor do texto original.

Mas já que a tendência existe e que os pais e professores preocupados e demasiado ocupados para perder algum tempo com o desenvolvimento não-Teletubbie dos seus rebentos/pupilos aplaudem com alegria estas iniciativas, que surjam então outras obras, que se arrisque mais e mais. Existe, por exemplo, um senhor chamado Sade que tem coisas umas giras para contar; ou quem sabe ir mais longe e desenvolver um projecto ao contrário, simplesmente porque sei que seria do agrado de muito bom leitor adulto conhecer algumas das outras aventuras da Anita. Material não falta. Escritores também não.
Sejamos audazes (ou, para ser um pouco mais académico e, por isso mesmo, melhor pessoa: Valete, fratres!).


(este comentário serve-se com algum ódio mas perdoe-se: afinal, serão "vituperatices" próprias da idade, assim como o péssimo trocadilho com a palavra "pessoa")

Ana Cristina Leonardo disse...

Isto é um disparate e um crime de lesa-literatura.