segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Cadáver Parte II

Agora é que vais ver como elas te mordem!

Curiosamente esta não era a primeira vez que o Barata ouvia tais palavras. Recordou imediatamente a dolorosa a infância que tivera a bordo do navio-escola em que os pais o colocaram. Eram pessoas simples e de poucos recursos. Ele era o terceiro filho. Não teve escolha.

A vida a bordo era dura. As cordas eram ásperas, as madeiras falhadas e os quartos acastanhados e frios. Os pais visitavam-no ao fim-de-semana. Os colegas agrediam-no durante o dia. Os oficiais castigavam-no de noite. Um dia resolveu enfrentar um colega que o esbofeteara sem razão. Sabia que estava a ir contra a escassa educação que tivera mas naquele dia não teve controlo sobre si. Fechou o punho e imaginou todas as forças que não tinha ao projectar a sua mão ossuda contra o olho do colega. Ainda relembra com surpresa e terror o lenho que lhe provocou. Mas o que recorda com mais intensidade foi o inevitável castigo dos oficiais, ansiosos por punir e educar à força de castigos corporais. Antes de o atirarem de cabeça para a casa das máquinas – foi assim que ganhou a sua célebre cicatriz no pescoço – agarraram-no pelos braços e perguntaram-lhe, “Achas que já és um homenzinho? Agora é que vais como elas te mordem!” Nos dias seguintes sofreu todas as humilhações possíveis a bordo daquela amaldiçoada embarcação. Aprendeu com o sabor do próprio sangue e o barulho dos dentes a estalar o preço do confronto em que entrara. Aprendeu a ter sempre uma fuga, antes de decidir enfrentar fosse que obstáculo fosse na sua vida. E assim fez uma vez mais. Afastou-se do canídeo feroz e com um pulo pouco acrobático saltou pela janela. E assim partiu deixando atrás de si uma chuva de cacos.



Nuno Fernandes

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